Durante a 2ª
Guerra Mundial, a National Gallery, em Londres, precisava encontrar uma forma
de proteger seu acervo dos constantes bombardeios em território inglês. Foi o
historiador da arte Kenneth Clark, então diretor do museu, o responsável por
uma missão que levaria as cerca de 2 mil obras da coleção ao subterrâneo de uma
mina no País de Gales. Engana-se quem pensa que os britânicos ficaram sem
acesso à arte Clark não só fez do ambiente do museu palco para uma série de
concertos diurnos como criou o programa Picture of the Month – a cada edição,
uma pintura era retirada do abrigo para ser exibida ao público.
Os tempos não são de guerra, mas os perigos trazidos pelo novo coronavírus
impuseram uma série de restrições ao universo das artes. Nos últimos meses, a
alternativa mais comum encontrada por museus e galerias para manter as
atividades foi a adaptação das exposições para o ambiente virtual. Sem recorrer
à internet, no entanto, uma série de iniciativas vem buscando encontrar
maneiras criativas de aproximar a arte do público.
Mostras ao ar livre saem em vantagem no contexto de isolamento social. No Museu
Brasileiro da Escultura e Ecologia (MuBE), uma exposição em cartaz desde o
começo do mês possibilita que quem passa pela frente do local, na Avenida
Europa, em São Paulo, aprecie um conjunto de obras produzidas por seis
artistas, incluindo Yoko Ono. Aliás, o título da mostra, O Ar que Nos Une, tem
inspiração em um texto da obra Grapefruit: a Book of Instructions and Drawings,
da artista e ativista japonesa. “A Yoko coloca que o ar é aquilo que nos
conecta e aquilo que nos separa. Era algo que estava na minha cabeça e parecia
que tinha encontrado o contexto perfeito para acontecer, que era a área externa
do museu”, explica a curadora Galciani Neves, destacando ainda a
inspiração na obra do filósofo italiano Emanuele Coccia
“A área externa do MuBE reivindica diálogos e experiências entre o próprio
prédio, os trabalhos e o público”, acrescenta. De acordo com Galciani, as
produções foram selecionadas a partir do “entendimento do ar como
materialidade em primeira instância”. E é do mesmo texto que inspirou a
exposição que parte a obra de Yoko. “A indicação dela e da assistente foi
que queriam manter uma instância mais intimista, então fizemos uma impressão
simples e montamos no jardim. É para ser lido por quem passa a pé, guardando um
tanto da escala de leitor e livro”, detalha a curadora da mostra, que
reúne ainda obras da dupla Motta & Lima, de Artur Lescher e Paulo Bruscky.
Da artista Laura Vinci, por sua vez, uma instalação produz uma espécie de bruma
movida pela corrente de ar, criando a ilusão de flutuação da marquise do museu.
“Eu entendo, de uma maneira poética, que ela conecta os trabalhos, cria os
diálogos entre esses ‘agentes’ que estão habitando o museu”, avalia a
curadora. Já de Ana Teixeira, a obra Em Contato é uma intervenção com 14 boias
no espelho d’água. Em cada uma, está inscrito um advérbio. Ao se moverem, elas
formam composições textuais diversas.
A ideia de céu aberto pauta também a mostra No Calor da Hora, parte do projeto
M.A.P.A (Modos de Ação para Propagar Arte). Promovida pela agência VIVA
Projects, a iniciativa espalha obras de 27 artistas no espaço público das
capitais brasileiras. O que pode parecer inusitado – a escolha de outdoors como
suporte – remete a uma prática dos anos 1960 e 1970. Como explica a curadora
Patricia Wagner, esse meio foi utilizado em momentos críticos do País, como na
ditadura militar, quando nomes como Paulo Bruscky (presente nesta mostra)
recorreriam ao que ficou conhecido como “artdoor”.
Ao lado da sócia Camila Barella, Cecilia Tanure criou o VIVA Projects como uma
forma de difundir arte contemporânea. No início do ano, elas já estavam
articulando com Patricia um projeto inédito de arte pública. No entanto, com a
pandemia, os planos foram frustrados. “Quando estávamos discutindo novos
modelos possíveis, no começo de abril, vimos que conseguiríamos conduzir esse
de dentro de casa, envolvendo o mínimo de pessoas que precisariam ir para a
rua”, conta Cecilia.
Patricia acrescenta que a forma encontrada foi também propícia para responder à
situação de “excepcionalidade” vivida hoje, em que confluem questões
sanitárias, políticas e econômicas. “De certa maneira, o título No Calor
da Hora colide com o entendimento tradicional da arte como um processo que
pressupõe uma decantação. Mas chegamos num ponto que precisávamos de respostas
imediatas, então o que convocamos foi que os artistas partissem de sua poética
para responder a este momento crítico “
A dispersão espacial também acompanha a iniciativa do curador Tiago de Abreu
Pinto. O avanço da pandemia se deu quando ele estava no Chile. Com os voos
cancelados, sem poder voltar ao Brasil, decidiu entrar em contato com artistas
do país, no que daria origem ao projeto Ao ar, livre. “Me dei conta que
estava num lugar em que não conhecia ninguém. Desde 2009, faço longas
entrevistas com artistas, conhecendo suas práticas. Achei que valeria a pena
começar uma conversa com os chilenos. Com tudo se transformando, me questionei:
Qual o lugar da ação artística física?”, relembra Tiago, que convocou 74
criadores de diferentes localidades do país.
Foi assim que o projeto se estruturou como uma espécie de exposição efêmera
“diluída no território”, em que os artistas poderiam criar “a
obra que quisessem, no espaço que quisessem”. A vírgula presente no título
busca enfatizar tal liberdade. As obras foram exibidas em 16 e 17 de maio.
Tiago explica que, como os chilenos estavam passando por um período de forte
convulsão social, muitos trabalhos acabaram por refletir isso.
A edição brasileira ocorreu em 22 e 23 de agosto, desta vez, com 136 artistas,
de manifestações bem diversas – das políticas às mais líricas. “O Éder
Oliveira pintou a imagem da avó num vidro metacrilato. Por uma ilusão de ótica,
a figura atravessa a janela e é como se estivesse sentada num banquinho na
praça da frente. Enquanto isso, deixa tocar uma conversa que gravou com
ela”, exemplifica Tiago. A última passagem do projeto foi pelo México, em
22 e 23 de setembro. Os “resíduos” dessas intervenções podem ser
vistos em imagens e vídeos no site da mostra.
Como ver as mostras
O Ar que nos Une
As obras podem ser vistas a distância por quem passa em frente ao MuBE (Rua
Alemanha, 221, Jardim Europa; mube.space). Vale fazer uma pausa para
contemplá-las com calma.
Até 11 de outubro.
No Calor da Hora
A mostra exibe um outdoor nas capitais do Brasil (exceto São Paulo; por causa
da Lei Cidade Limpa, a obra está na divisa com Osasco). Veja a localização em
vivaprojects.org/ mapa. Até 25 de outubro.
Ao Ar, Livre
A mostra teve obras apresentadas em diferentes localidades
do Chile, Brasil e México, entre maio e setembro. O público
pode conferir as ações e os artistas participantes no site aoar-livre.com.