Luta contra as fake news


A jornalista Danielle Zampolo, repórter do Profissão Repórter, da TV Globo, passou mais de 40 dias em frente ao Hospital Tite Setúbal, na zona leste de São Paulo, ouvindo histórias dos familiares e vítimas da covid-19. Com a câmera no ombro, ela presenciou momentos de esperança, alegria e tristeza, mas também ouviu muitas provocações. Pessoas que diziam que tudo era invenção. “Estar aqui, no hospital, significa dizer que isso está acontecendo de verdade”, afirma.

A frase da repórter está na parte final do documentário Cercados – A Imprensa Contra o Negacionismo na Pandemia, produzido pela plataforma de streaming Globoplay, disponível a partir de amanhã, 3. O filme sintetiza os desafios da cobertura jornalística da pandemia no Brasil. O foco está nos profissionais dos principais veículos de comunicação do País que estão atrás das câmeras, lentes e notebooks para mostrar o que acontece desde fevereiro, quando foi registrado o primeiro caso. Ao acompanhar o trabalho dos jornalistas – e as barreiras que aparecem no caminho -, o filme faz uma retrospectiva deste ano louco que estamos vivendo.

Mas ele não é um filme de entrevistas. Ao longo de três meses, a equipe acompanhou os profissionais de imprensa e presenciou situações importantes do trabalho de 63 pessoas em cinco cidades (Manaus, Fortaleza, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo). É um filme de vivência.

Foram ouvidos desde fotógrafos freelancers até diretores de redação. Minha opinião de jornalista que está trabalhando na pandemia, mas que não é crítico de cinema (os mestres Luiz Zanin Oricchio e Luiz Carlos Merten que me perdoem): o filme é muito bom ao combinar conteúdo informativo e a emoção dos dramas individuais, trazer bastidores raros do trabalho jornalístico e dar a chance do espectador refletir sobre os acontecimentos. Diante do desafio de contar uma história que todo mundo viveu, o filme fornece um novo de ponto de vista, a visão de quem escreve a notícia. Esse é o maior frescor do documentário.

Ele mostra com precisão que a pandemia, também para os jornalistas, não está sendo tarefa fácil. Em maio, o fotógrafo Edmar Barros, da Associated Press, chorava toda vez que ia ao cemitério em Manaus e presenciava enterros em valas coletivas feitos por tratores. “Ouvi histórias muito tristes. Eu tinha falado que não queria mais voltar. Mas a gente tem de mostrar o que acontece”, conta. Everton Lucas, da cearense TVC, perdeu o avô José Gilbenê Barbosa após 18 dias de internação. Sua história pessoal se mistura às próprias tristezas que ele reportou. Pelo menos 180 jornalistas dos principais órgãos de imprensa do País contraíram covid.

Eu me lembro da primeira vez que fui ao cemitério da Vila Formosa, naquele dia em que as covas abertas deixaram o mundo de boca aberta na capa do The Washington Post. Era abril. Foi o coveiro James Alan que me mostrou que o problema era muito maior do que todo mundo dizia. Até hoje nós trocamos mensagens. Ele tem medo de passar por tudo aquilo novamente. Depois daquela entrevista, eu passei, assim como todos os colegas, a assumir a função de orientar a população e dizer “se cuide”.

O nome do filme assume um caleidoscópio de significados. Em termos físicos, é uma referência ao local onde os profissionais da imprensa fazem a cobertura diária do Palácio Alvorada. Um cercadinho mesmo, onde a imprensa fica encurralada diante dos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro. O lugar aparece várias vezes no filme.

Também é um lugar simbólico: a luta da imprensa diante de quem insiste em negar a pandemia. Uma referência ao combate das fake news e ao trabalho minucioso para checar e desconstruir uma informação falsa. “Meu pai morreu de covid. Você fica numa espécie de trincheira vendo que informações falsas são divulgadas por pessoas que deveriam ser confiáveis. Com uma checagem, você pode salvar vidas”, diz Roney Domingos, do G1.

No documentário, o termo “negacionismo” tem nome e sobrenome: Jair Bolsonaro. O filme percorre todos os atos do presidente para minimizar a pandemia. No início, foram as declarações polêmicas, como “uma gripezinha não vai me derrubar” ou “não sou coveiro” diante do aumento do número de mortes. Depois, divergências públicas com o então ministro Luiz Henrique Mandetta, depois demitido. “Quem não quiser trabalhar que fique em casa, p…”, gritava o presidente em março. “Ouçam as orientações dos governadores e prefeitos que estão em contato com o sistema de saúde”, rebatia Mandetta. Em seguida, a curta permanência de Nelson Teich.

O negacionismo virou violência. Apoiadores do presidente agrediram com chutes, socos e empurrões o fotógrafo Dida Sampaio, do Estadão, que acompanhava uma manifestação pró-governo em 3 de maio, em Brasília. “Não tem paixão e romantismo. Temos de manter a câmera ligada e pronta para esses momentos. Até virar alvo. Fui agredido com chutes e socos. Tomei cotovelada”, conta. Em São Paulo, os motoristas do Estadão recomendam que os carros saiam sem logotipo. Viro o crachá antes de sair para uma cobertura.

Mesmo cercado, o jornalismo respondeu. Diante das dificuldades impostas pelo governo federal para divulgar os números diários da pandemia, um consórcio dos veículos de imprensa foi criado para consolidar as informações das secretarias estaduais. Ele funciona – e bem – até hoje.

O cerco também é individual. Nesse ponto, Cercados faz referência à quarentena. E aí, o repórter vive um paradoxo: como se isolar se tenho de contar para os outros o que está acontecendo? A saída foi usar máscara, “beber” álcool em gel e se isolar. Fiquei oito meses sem ver minha mãe. Fiquei isolado dentro de casa algumas vezes, longe da família.

Existe uma cena em que David Friedlander, editor-chefe do Estadão, chega ao prédio depois de mais de dois meses e encontra tudo vazio. Ninguém. Todo mundo em home office. Meses depois, o editor Daniel Bramatti, responsável pela consolidação dos dados da pandemia, viveu um momento tristemente histórico com poucos colegas na redação vazia: o Brasil chegava à marca de 100 mil mortos.

Essa pegada informativa e emocional se explica pela trajetória do diretor Caio Cavechini. Ele é jornalista e documentarista. “A gente não imaginava que o negacionismo e o confronto ao trabalho da imprensa se tornariam um fio condutor tão marcado. A informação jornalística ainda é colocada em xeque por teorias conspiratórias e fake news. Estou aflito com o quadro que esse documentário pinta. Ele continua se desenrolando”, diz o diretor de 37 anos que também assina Marielle – O Documentário.

Cercados sublinha a preocupação dos veículos em humanizar a cobertura. Descobrimos como surgiu a ideia de substituir o painel de fundo do Jornal Nacional por rostos das vítimas, uma das principais imagens da cobertura. E os detalhes da concepção da capa histórica do jornal O Globo para a marca de 10 mil mortos e a do Estadão para a marca de 50 mil vítimas da covid. Os números expressivos da pandemia são cidadãos, pessoas, vidas. O plano político e a dimensão da tragédia não perdem de vista as histórias individuais nas quase duas horas do filme – a seis dias dos 100 mil mortos, Bolsonaro atingiu a aprovação de 37%, a maior até então.

Mas destaca que há esperança. Como o caso do repórter cinematográfico André Michel, da TV Globo, que foi aplaudido pelos amigos quando voltou à redação depois de sua recuperação.

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