Como a sala de cinema tenta resistir à pandemia

Marcelo Camargo/Agência Brasil
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A gerente de banco Jéssica Belliomini, 30 anos, e a filha Anne Hamaguti, de 3 anos, aguardavam na fila para assistir ao filme Lilo, Lilo, Crocodilo, que entrou em cartaz no dia 2. Seria a primeira experiência da pequena Anne em uma sala de cinema e o retorno de sua mãe, que assim como milhares de brasileiros ainda não havia retomado o hábito de assistir a filmes nas telonas desde o início da pandemia. Para se ter uma ideia, na sessão em que mãe e filha assistiram à história do pequeno crocodilo cantor havia apenas outros três espectadores. “Hoje eu tirei o dia para trazê-la para conhecer o cinema, vamos ver, se ela gostar e se comportar, voltaremos mais vezes”, afirma Jéssica.

Assim como Jéssica e Anne, muitos brasileiros estavam receosos de entrar em uma sala escura e fechada com dezenas de estranhos apenas para assistir a um filme inédito. Em 2020, houve o fechamento dos cinemas na maior parte do ano, mas 2021 também foi duro para o segmento. A pandemia tirou não só o público das salas, mas também esvaziou a grade de lançamentos, devido às restrições sanitárias que levaram ao adiamento de produções. O segmento agora tenta se recuperar, mas ainda encontra dificuldades em tirar o público do sofá.

No primeiro semestre de 2022, as salas de exibição receberam 44,5 milhões de pessoas, segundo a Agência Nacional do Cinema (Ancine). Apesar de ser um crescimento ante 2021, quando 52,6 milhões foram aos cinemas no ano completo, a retomada dos cinemas engatinha no País. O público que foi ao cinema de janeiro a setembro de 2022 ainda está 48% abaixo do mesmo período de 2019, enquanto a renda de bilheteria tem queda de 38%

O ano de 2019 foi de recuperação do público nos cinemas, com 177,7 milhões de espectadores. Em seguida, veio a pandemia, e o número de espectadores caiu para 39,4 milhões, um tombo de 78%. O baque no faturamento foi na mesma proporção, indo de R$ 2,8 bilhões para R$ 628 milhões, de 2019 para 2020. A dependência da quantidade de títulos se reflete nos números. Em 2019, 38 filmes tiveram público entre 500 mil e 2 milhões, enquanto 18 tiveram público superior a 2 milhões. Em 2022, os números passaram para 16 e 11, respectivamente.

REAPROXIMAÇÃO. O escritor Guilherme Dearo, 33 anos, por ano, ia cerca de 30 vezes ao cinema, conta, e em 2020 e 2021 foi apenas três. Aos poucos, retoma o hábito. “O orçamento está mais apertado, e os preços de comida e transporte estão mais caros. O ingresso para uma pessoa assistir a um único filme custa R$ 40. Os cinemas ainda estão vazios, sem filas e com muitas poltronas vagas. Por isso, muitos cinemas estão fechando as portas. Os teatros, os bares e os shows estão cheios, mas o cinema não fica mais lotado por causa dos aplicativos de streaming”, diz.

Como outros produtos e serviços do dia a dia do brasileiro, o preço do ingresso para assistir a um longa nas telonas também inflacionou nos últimos meses. Dados do Índice de Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) apontam alta de 8,57% no preço dos cinemas para o acumulado do ano, praticamente o dobro da inflação geral no período, que ficou em 4,70% até outubro.

A venda de ingressos de cinema no mundo é um mercado que deve faturar US$ 16,94 bilhões em 2022, segundo previsão da consultoria Statista. O número representa um salto de 237,7% ante 2021, quando a receita global foi de US$ 5 bilhões. Já no Brasil, a venda de ingressos faturou US$ 40 milhões em 2021 e deve fechar 2022 com US$ 142 milhões. A receita média por pessoa é de apenas US$ 9.53, pouco menos de um terço da média global. A recuperação do segmento no País deve ser em ritmo mais forte do que a média mundial até 2027, crescendo anualmente 4,62%, ante 3,6%.

No vácuo deixado pelos cinemas, as grandes empresas de streaming apostaram pesado durante a pandemia e colheram bons frutos. A Netflix superou a marca de 200 milhões de assinantes. A HBO ganhou novo fôlego com o HBO Max e produções originais, como episódios que reuniram elencos da série Friends e dos filmes da franquia Harry Potter. A Disney, enquanto perdeu público nos parques, viu seu serviço de streaming decolar e aproveitou para lançar produções originais da Marvel.

Mas, ainda no primeiro trimestre deste ano, a Netflix precisou demitir funcionários após uma queda brusca de assinantes pela primeira vez em 10 anos. Os motivos associados ao movimento são o fim das restrições sanitárias para conter a pandemia em diversos países, o aumento da concorrência e a redução do poder de compra no mundo. Ou seja, apesar dos desafios, os consumidores não têm intenção de abrir mão totalmente da experiência de ir ao cinema.

Tiago Mafra, diretor da Ancine, cita a redução de lançamentos de filmes desde 2020 e prevê que o público ainda levará algum tempo para retomar o hábito de ir às salas. “De longe, o cinema foi o entretenimento mais afetado. O cinema voltou quando academias, restaurantes e bares já estavam em pleno funcionamento. Isso impactou o hábito do consumidor. Esses dois anos sem a rotina de ir ao cinema prolongam o retorno aos patamares pré-pandemia”, diz Mafra.

O executivo ressalta que a janela de exibição do cinema em relação a outros formatos, como streaming e TV paga, foi reduzida para dar rentabilidade às produções no período mais agudo da pandemia. Mas isso já está mudando, e o público deve ser estimulado a voltar ao cinema, à medida que as produções voltem. “No ano que vem, poderemos ter melhor dimensão da recuperação do mercado porque teremos uma base de comparação melhor, com 650 filmes lançados por ano. Houve semanas neste ano sem filmes para o público infantil”, diz Mafra.

MUDANÇA. Para Luiz Marinho, sócio-diretor da consultoria Gouvêa Malls, o não retorno ao cinema tem uma combinação de fatores, como o custo, a redução do fluxo dos shoppings e a ascensão do streaming. “O cinema não perdeu a atratividade. Mas as pessoas estão sendo mais seletivas para investir em um programa de cinema. O público prefere ir ao cinema quando há grandes títulos da Marvel e da Disney. Esse é um comportamento global que é uma consequência do streaming. A distância entre o filme sair do cinema e chegar à TV fechada ou streaming era mais longa e diminuiu. Por isso, os cinemas precisam mexer em suas estratégias. O cinema se torna um programa mais excludente à medida que há preços mais altos e poltronas mais sofisticadas”, afirma.

Marinho diz ainda que o panorama do segmento mudou após o auge da pandemia, levando ao congelamento dos investimentos de expansão de grandes redes, o que abre uma oportunidade para as empresas conquistarem território País afora.

O segmento busca recuperar o público com novas produções chegando às telas. Além do fator sazonalidade, há investimentos para melhorar a experiência do consumidor. Desde antes da pandemia, o segmento já apostava em tecnologia para modernizar as salas. Segundo especialistas, há dois caminhos principais para atrair o consumidor: criar salas sofisticadas ou reduzir os preços.

Ainda em 2019, a sul-coreana Samsung se uniu à rede de cinemas Cinépolis e trouxe ao País a primeira sala Cinema Onyx 4K, que não tem projetor. Em vez disso, o painel da sala utiliza tecnologia LED, parecida com a dos televisores, mas com tamanho de 455 polegadas. A sala fica no Shopping JK Iguatemi, na Vila Olímpia, em São Paulo. Com a tecnologia, a tela pode oferecer picos dez vezes superiores em termos de brilho e contraste, em razão da ausência do projetor. A sala tecnológica representa um dos esforços do setor para atrair o público e, ao mesmo tempo, elevar o nível de experiência e preço dos ingressos.

Para criar uma receita perene e restabelecer o hábito de ir ao cinema, a rede Cinemark criou, neste ano, um novo programa de fidelidade, o Cinemark Club. A assinatura mensal dá acesso a benefícios, como dois ingressos 2D por mês válidos para qualquer dia da semana, até 20% de desconto em petiscos selecionados, um combo (pipoca e refrigerante) no mês de aniversário do cliente, além de brindes.

Na avaliação de Igor Kupstas, diretor da O2 Play – braço de vídeo da produtora O2 Filmes -, a retomada ainda morosa afeta também as produções do cinema nacional. “Os distribuidores ficam mais receosos de investir, os filmes são menos promovidos, há menos espaço para dinheiro bom, para riscos. Tem sido uma montanha-russa, pois há picos e quedas bruscas”, diz.

Enquanto as salas não voltam a ficar cheias, a maioria das empresas vai usando seu espaço de maneira a preencher as lacunas na sua agenda com eventos nem sempre relacionados ao universo dos filmes. Palestras, festas de aniversário, sessões privadas, workshops, confraternizações e todo tipo de evento corporativo passaram a ser uma forma extra de faturamento.

A rede Cinépolis oferece até pacotes de festas para crianças de 1 a 12 anos em um salão de festas próprio. Outra opção que foge ao tradicional, são as “Sala Junior”, voltadas às crianças. No local, o público conta com acesso a brinquedos, doces e até um tobogã instalado dentro de uma sala de cinema. Nesses espaços, o preço do ingresso pode chegar até R$ 107, conforme site Ingressos.com.

A rede Cinemark, durante o período de escassez de público, lançou o projeto “sua sessão”, em que os usuários poderiam fechar a sala do cinema por R$ 350. Pelo valor, quem contratasse o serviço poderia chamar até 20 pessoas para acompanhar um filme na rede e ter essa sensação de “serviço exclusivo”.

ANUNCIANTES. Assim como o público que ainda não voltou às salas, quem também não cravou seu retorno aos cinemas foram as marcas e os anunciantes. Isso fica claro em números do Cenp-Meios, o Fórum de Autorregulação do Mercado Publicitário, sobre os investimentos de mídia em cada tipo de veículo.

Segundo os dados da entidade, entre 2019 e 2021, os valores de anúncios feitos no espaço que antecede o início dos filmes despencou quase 80%. Para 2022, o desempenho não deve superar ainda os patamares pré-pandêmicos, isso porque de janeiro a junho deste ano – informações mais recentes compiladas pelo Cenp-Meios – o valor arrecadado era de apenas 30% do que foi arrecadado antes da pandemia.

Apesar de não ser um foco principal dos investimentos das agências de publicidade, o espaço nos cinemas era utilizado para ações de maior fôlego, que tivessem alguma conexão com o cinema, mas no pós-pandemia também essa alternativa ainda não engatou.

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