Na semana passada, o maestro Abel Rocha, diretor da Sinfônica de Santo
André, participava de uma reunião online com maestros e gestores de teatros e
orquestras de todo o País. Na pauta, o impacto da paralisação provocada pela
pandemia na vida musical e possíveis caminhos e alternativas a serem
perseguidos a partir de agora.
“Mas não é fácil. Para você ter uma ideia, quando
começamos aquela reunião, a Funarte acabara de nomear um novo diretor. E,
quando terminamos, ele já não estava mais no cargo”, ele brinca, não sem
um certo riso nervoso. “O problema é que uma das características desse
momento que estamos vivendo é justamente o fato de o cenário mudar a todo
instante. Não há como saber exatamente o que teremos pela frente. E, mesmo
quando voltarmos aos palcos, precisaremos ter em mente sempre a profilaxia
necessária para proteger músicos e público.”
Uma certeza, porém, é que a atividade musical precisa seguir
viva de alguma forma. E foi com isso em mente que o maestro e a orquestra
idealizaram um projeto que não apenas se propõe a seguir dando espaço à nova
criação – mas também a fazer isso refletindo por meio da arte sobre o próprio
contexto atual.
Microestreias da Quarentena consiste na encomenda de novas
obras a oito compositores brasileiros. A eles foi pedido que, ao escrever suas
obras, tivessem a pandemia e o isolamento social como temas. Elas serão
apresentadas a partir das 14 horas de domingo na página do Facebook da
Sinfônica de Santo André, a cada meia hora, precedidas de um pequeno vídeo em
que o autor fala de sua criação. Depois, ficarão disponíveis em uma playlist no
canal da orquestra no YouTube.
Cada peça foi escrita para quatro a seis músicos, que
gravaram individualmente suas partes em casa. “Ao todo, cerca de 40
artistas da orquestra participaram do projeto, fora toda a equipe técnica, que
trabalhou com muito cuidado na edição e na sincronização dos vídeos, o que não
é uma tarefa fácil Foi um enorme desafio. Cada artista tem um equipamento em casa,
nem todo mundo tem impressora para imprimir a partitura, então tem que se
equilibrar entre o celular, o tablet, o computador. São coisas nas quais a
gente só pensa quando se propõe a fazer. No final das contas, precisamos montar
oito linhas de produção, uma para cada peça”, diz Rocha.
As dificuldades também têm a ver com a própria interpretação.
Na escolha dos oito compositores – Alexandre Guerra, Alexandre Lunsqui, Chico
Mello, João Cristal, Leonardo Martinelli, Mauricio De Bonis, Neymar Dias e João
Guilherme Ripper – a orquestra buscou montar um panorama diversificado,
contemplando diferentes estéticas, com partituras ousadas “Em alguns
casos, como na peça do Neymar Dias, o próprio compositor participou da
interpretação e gravou uma base sobre a qual os demais trabalharam. Em outros,
eu mesmo fui ao piano e preparei orientações para os músicos, ajudando a
decifrar as partituras e sugerindo caminhos de execução.”
O compositor paulista Leonardo Martinelli conta que, ao
escrever Feras Engaioladas, tentou criar uma metáfora musical para o momento
atual. “O título da peça tem um duplo sentido com o qual brinquei ao
escrever. A fera é tanto o animal quanto aquele músico que é muito bom, que
toca muito, a fera do violino, a fera do clarinete, e assim por diante. Então
pensei nessas feras enjauladas em casa. E na peça cada instrumento tem direito
a dar um grito, um grito que precisa ser colocado para fora.”
Em outros casos, o contexto em que a peça seria interpretada
acabou influenciando a composição. O carioca João Guilherme Ripper conta que
incorporou a impossibilidade dos músicos estarem juntos para gravar na hora de
escrever Quarteto para um Tempo Sem Fim. “Tomei alguns cuidados.
Ritmicamente, a obra não possui uma complexidade que tornaria essa questão mais
difícil do que já é”, ele explica.
Ripper, além de músico, tem uma forte atuação como gestor
cultural. Atualmente, é diretor da Sala Cecília Meireles, no Rio Como Rocha,
ele também tem se dedicado a discussões sobre o cenário atual e seu impacto na
atividade musical. Para ele, a situação na qual estamos vivendo vai
necessariamente nos levar a pensar em modos de fazer música de formas
diferentes. “Estamos entrando em uma nova era, na qual as plataformas
digitais terão uma função fundamental. Mesmo quando reabrirmos os teatros,
teremos uma série de limitações de público, plateias reduzidas. E pensar em
possibilidades como essa idealizada pela Orquestra Sinfônica de Santo André
será necessário.”