Cinquenta anos de consciência negra: Conheça histórias de pessoas que superaram o racismo

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
- PUBLICIDADE -

Maria Menezes

Desde a sua criação em 2016, o serviço SOS Racismo da Prefeitura de Guarulhos recebeu somente 40 acessos, tendo como principais queixas casos de racismo, injúria racial e intolerância religiosa, enquanto a Subsecretaria da Igualdade Racial recebeu apenas três denúncias durante o ano, no período de janeiro a outubro.

O programa, implantado pela Lei municipal número 7309/14, visa o atendimento às vítimas de discriminação étnico-racial e religiosa ou intolerâncias correspondentes, com atendimento social, encaminhamento psicológico e jurídico de atenção local.

Para o atual vice-prefeito e secretário da Cultura do município, Professor Jesus, criador do serviço junto ao vereador Lamé (MDB), um dos principais fatores para a falta de denúncias sobre racismo, não só na cidade, além da falta de conhecimento sobre os meios de denúncia, é o medo. “O racismo infelizmente se dá de forma estrutural e dói o coração dizer, mas muitos negros ainda se calam diante do preconceito. Talvez se acostumaram com algo que na realidade não deveriam”, diz. 

Para ele, o medo não é somente de dizer, mas também do retorno das pessoas, que minimizam os relatos. “Muitas vezes por medo as pessoas não buscam o caminho do combate. Então procurem, não deixem, não se calem. As pessoas precisam defender a sua cor e a sua raça sim. Eu acho que as pessoas precisam buscar e defender seus ideais. Se conscientize. Vá à luta, não abaixe a cabeça”, concluiu. 

O SOS Racismo pode ser acessado através do telefone 2402-1000 ou pelo endereço eletrônico [email protected], preservando-se o sigilo às denúncias.

Em 2020, o Brasil registrou 10.291 casos de injúria racial, os dados fazem parte do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Você é pobre e eu não gosto de pobre, você é político e eu não gosto de político e você é preto, e eu não gosto de preto. Sai da minha casa”  

Há 13 anos, em 2008, enquanto se candidatava pela segunda vez para vereador no município, o atual vice-prefeito, Professor Jesus, conta que passou um de seus ataques racistas mais marcantes. “Eu era coordenador de um projeto chamado ‘Escola da Família’ e através dele eu mantinha um contato grande com a comunidade. Nela, tinha um homem que comandava um time de futebol para crianças e eu achava muito bacana, liberava a quadra para eles jogarem, doava bolas e redes, e neste ano, como estava concorrendo mais uma vez para vereador, fui até a casa dele para pedir voto. Quando cheguei lá, comecei a conversar, explicando que tinha projetos sociais na comunidade e estava me candidatando e ele olhou para mim e disse ‘eu não voto em você porque você tem três p’s que eu não gosto’, ingênuo e sem entender o que aquilo significava, perguntei para ele por que três p’s e ele olhou no meu rosto e respondeu: ‘primeiro: você é pobre, e eu não gosto de pobre. Segundo: você é político, e eu não gosto de político e terceiro você é preto, e eu não gosto de preto. Sai da minha casa.’ Foi uma situação muito complicada, porque ouvir isso na sua cara é muito ruim”, relatou.

Diante da situação, Jesus conta que não teve outra reação além de se retirar e chorar muito. Apesar disso, para ele, aquelas palavras não passaram de uma alavanca para que procurasse ainda mais o sucesso. “Graças a Deus aquelas palavras me deram ainda mais forças para chegar aonde eu cheguei”, conclui. 

Fora da vida política, enquanto atuava na área de pedagogia, como professor de Língua Portuguesa em uma escola estadual também enfrentou casos de racismo ao ser barrado em eventos. Hoje, já no cargo de vice-prefeito e secretário de Cultura, conta que ainda ouve comentários surpresos ao se apresentar em eventos políticos. 

Apesar dos ataques sofridos, Jesus afirmou que nunca chegou a denunciar. Isso porque, segundo ele, durante a época o assunto não era abertamente tratado como hoje em dia, o que dificultava o acesso às denúncias e reclamações. “Eu nunca tomei atitude alguma. A primeira vez eu chorei, fui pra casa e falei ‘Cara, eu sou preto mesmo, tenho que levantar minha cabeça e prosseguir.’ Na questão dos eventos colegiais eu cheguei a pensar em reclamar, mas olhei para as pessoas e não tinha para quem reclamar, então eu nunca fiz uma denúncia. Agora, lógico, se acontecesse hoje, eu agiria diferente, mas naquela época eu não fiz nada”, relata. Ele conta ainda que as dificuldades que enfrentou para saber como denunciar foram um dos principais motivos que o levou a criar o serviço SOS Racismo.

“Você é preto e é folgado” 

Ricardo Nascimento, professor de História e Geografia, de 39 anos, conta que há três anos enfrentou pela primeira vez um ataque racista direto e explícito. “Eu fui buscar um objeto para a minha esposa dentro do carro, no estacionamento de um shopping. Uma mulher passou por mim e disse ‘Olha meu amigo, você está atrapalhando a passagem’, eu expliquei para ela que ali não era uma área de passagem e sim do estacionamento, mostrando que o carro estava estacionado em uma área limite dele e mais uma vez ela insistiu que eu deveria prestar mais atenção e que ali era, sim, uma área de passagem. Com a minha segunda explicação, dizendo que eu estava em uma área de estacionamento, ela se enfureceu e repetiu duas vezes ‘Olha, você é preto e é folgado’”, relatou. Naquele momento, ao avisar que acionaria a polícia e tomaria as medidas necessárias para realizar a denúncia, já que contou com testemunhas no local, a mulher conseguiu correr e fugir com o carro, onde estava com a família. Nascimento conta que apesar de correr atrás para alcançar, pelo menos, a placa do veículo e de contar com ajuda das pessoas em volta para repudiar o caso, não conseguiu fotografar.

Após o ataque, o professor explica que o sentimento foi de indignação. “Eu me senti diminuído, atacado e desconstruído como pessoa. Naquele momento a intenção dela era me inferiorizar e me convencer que eu estava abaixo da pessoa dela e que eu não estava no meu lugar na sociedade”, conclui.

Nascimento relata também sobre outro ataque que sofreu recentemente. Desta vez, dentro do prédio que reside. “Eu estava em casa e desci na garagem para ver o meu carro, como sempre faço. Chegando lá, estava de chinelo e bermuda e vi um vizinho no carro da frente, enquanto olhava o meu carro, ouvi ele dizendo ‘Algum problema aí?’ eu achei até que fosse um vizinho conhecido meu. Chegando mais perto, vi que eu não o conhecia. Enquanto isso ele repetia ‘Tá com algum problema?’, e eu respondi ‘Esse carro é meu, amigo, eu estou dando uma olhada’, enquanto ele perguntava mais vezes se eu estava com algum problema e eu rebatia dizendo que o carro era meu, um segurança do prédio precisou intervir na situação, reafirmando que o carro era meu e separando ele, que começou a vir para cima de mim. Com a intervenção do segurança ele saiu”, explica. 

Dessa vez, tendo todas as informações necessárias, o professor se encaminhou ao 1ºDP, que atende as denúncias da região, para realizar um boletim de ocorrência e foi ensinado a concluir a denúncia virtualmente. Feito isso, foi informado que o processo será iniciado em março do ano que vem, devido a alta demanda de denúncias. Nascimento conta que, por entender de leis e saber o seu lugar, o processo para incriminação tanto pessoalmente quanto pela internet foi muito claro e respeitoso.

Para ele, um dos motivos para os baixos números de denúncia é a falta de conhecimento sobre leis e direito, além da baixa autoestima. No Brasil, o perfil de pessoas que mais cometem suicídio são jovens negros de até 29 anos, além de terem 45% mais riscos de desenvolverem depressão, os dados foram divulgados pelo Ministério da Saúde, em 2019. “O processo de desconstrução do negro como ser humano começa desde a época dos navios negreiros. Então é difícil você ver o povo negro no Brasil se afirmar como negro e ter orgulho de ser negro”, explica o professor. 

Para ele, as pessoas precisam se orgulhar de quem são e o que são para a família e sociedade. “Nós precisamos dar fala a quem não tem fala. Dar cara a quem não tem cara, a quem não tem um rosto próprio. Nós devemos mostrar para as pessoas que nós podemos nos manifestar e ser ouvidos”, destacou.

Dia da Consciência Negra 

O dia 20 de novembro, data em que é celebrado o Dia da Consciência Negra, foi instituído oficialmente pela Lei nº 12.519 em 2011. A data faz referência à morte do líder do Quilombo dos Palmares, Francisco Zumbi, conhecido historicamente como Zumbi dos Palmares, morto por bandeirantes em 1995. 

A comemoração era inicialmente prevista para o dia 13 de maio, quando aconteceu a abolição da escravatura, e foi deixada de lado após Zumbi se tornar símbolo da luta e resistência dos negros no país, em 1978.  Para o movimento negro o dia 13 de maio significa uma “falsa liberdade” de escravos que foram alforriados sem remuneração, assistência pública ou liberdade para viver da mesma forma que a pessoa branca. Desde então, a comemoração abre espaço para uma série de reflexões sobre a luta antirracista.

Para o vice-prefeito, apesar da data não ser suficiente para conscientizar a sociedade sobre as lutas das pessoas negras, é um dia importante para celebrar as conquistas e avanços dos últimos tempos. “O negro é um marco na história do nosso país. Zumbi dos Palmares foi um grande símbolo de resistência para as diversidades. Essa data precisa ser usada para a conscientização, para que as pessoas vejam a importância do negro e para que nos unamos para construir um Brasil mais humano e igual”, diz. Para ele, uma das formas de combater o racismo no país é gerando oportunidades, já que, apesar dos avanços, o negro ainda é deixado às margens da sociedade.

Além disso, para o professor Nascimento, a melhor forma de combater o racismo no país é através da educação. Para ambos, uma educação de qualidade, além do ensino sobre igualdade racial, é a única forma de desmontar o racismo estrutural que a sociedade é ensinada desde a infância. “Não devemos mais falar sobre o racismo com maquiagens, com máscaras. Devemos expor as vísceras da questão para que todos entendam sobre esse debate”, conclui Nascimento.  

Denúncias em relação a comércios

Em 2019 uma pesquisa elaborada pela Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon) com mais de 1,6 mil consumidores mostrou que 65% das pessoas pretas já alegaram ataques racistas em relação ao consumo.  

Na última semana, em convênio com a Universidade Zumbi dos Palmares, o Procon-SP anunciou um canal específico para denúncias de racismo em áreas comerciais. Além de dar suporte ao departamento com informações sobre o racismo, a universidade vai oferecer apoio psicológico aos consumidores vítimas dos ataques preconceituosos.

- PUBLICIDADE -