‘Censo’ mapeia benzedeiras de SP e revela tradição viva

Foto: Agência Brasil

Para ajuda no trabalho, melhora no sono, fim do mau olhado e outros tantos problemas, o ofício exercido pelas benzedeiras segue sendo buscado (e exercido). Essas figuras da cultura popular e religiosa brasileira estão principalmente nas periferias e áreas rurais, mas também na maior metrópole do País.

Ao menos 80 pessoas exercem o ofício na capital paulista, número que chega a 150 se considerar o estado. Os números são de um mapeamento do departamento cultural da escola de samba paulistana Camisa Verde e Branco, cujo enredo do próximo desfile é Rezadeiras – Na Fé do Trevo, Eu Te Benzo! Na Fé do Trevo, Eu Te Curo!

Chamada de Mapa das Benzedeiras, a iniciativa foi lançada há menos de dois meses pela agremiação e será mantida mesmo após o próximo carnaval. As mulheres são a imensa maioria das pessoas identificadas no levantamento, majoritariamente idosas ou próximas de alcançar esta faixa etária.

Uma delas é Tia Eliza de Categeró, de 64 anos, que auxiliou nas pesquisas do carnavalesco da escola, Renan Ribeiro, de 34 anos. Ela atende em plena região central de São Paulo, na Bela Vista, onde recebe pessoas de diferentes classes sociais, profissões e origens, anônimas ou nem tanto.

“Na minha capelinha, vem gente de todas as religiões. Vem budista, vem evangélico, vem judeu. Tem uma família de Israel que sempre pede oração aqui”, relata. As motivações também são variadas. “Vem até cachorro para benzer, gato com o pelo caindo ” Tia Eliza descobriu o ofício enquanto observava esse trabalho ser exercido pela mãe, com quem ia ao terreiro na sexta-feira e à missa no domingo. Quando criança, brincava de batizar e abençoar as bonecas. “Fui fazendo de olho”, conta.

Adulta, era eventualmente procurada por conhecidos, mas foi há cerca de 22 anos que fundou a capelinha, onde passou a receber até 40 pessoas por dia. “Tem até gente de fora que manda o nome para colocar em corrente de oração”, comenta. O atendimento não é cobrado, mas eventuais doações são bem recebidas.

Na capela, há santo, preto velho, caboclo, orixá, bonecas e referências ciganas, indígenas e outras. Tia Eliza define o sincretismo como o de um templo ecumênico, de espiritualidade. Ao ser procurada, em geral, ouve o desabafo, faz orações, acende vela e faz o benzimento com arruda. Eventualmente, recomenda chá, banho de erva ou flores.

Para ela, o ofício é um dom. O mesmo que diz perceber em uma bisneta de 5 anos, a qual chegou a gravar em vídeo enquanto benzia uma advogada com arruda e alfazema. “Desde os dois anos, ela tem vontade”, relata Tia Eliza, cujas filhas não se tornaram benzedeiras.

Nova geração

Durante a realização do mapeamento, foram identificadas até mesmo benzedeiras dentro da própria Camisa Verde e Branco. A passista Aline Christina Pedro, de 27 anos, conta que a maioria dos integrantes da escola não sabia que ela também exerce o ofício em paralelo ao trabalho como cabeleireira e com carnaval

De família católica, aprendeu os benzimentos aos oito anos de idade, de uma senhora acamada. “Eu era muito arteira, então era muito benzida”, conta. Em uma das vezes, a idosa que a atendia percebeu que a então menina tentava repetir os gestos. “Ela falou para a minha mãe para eu aprender a doutrina.”

Aline passou a frequentar a casa da senhora semanalmente, na qual aprendeu rezas, doutrinas, ervas e chás. Após a morte da mulher, perdeu o contato durante um tempo, mas, aos 12 anos, foi chamada em uma festa para benzer uma criança que estaria com “bucho virado”.

Mais adiante, aos 18 anos, entrou para a umbanda candomblecista, onde aprendeu outros ritos com uma mãe de santo benzedeira. Hoje, é procurada esporadicamente para exercer o ofício, embora não costume divulgar e tampouco cobre pelo atendimento. “Caridade não precisa ser divulgada”, justifica.

Idealizado mais de um ano após a escolha do enredo pela escola de samba, o levantamento segue em curso. As indicações são feitas por formulário divulgado na internet. Uma equipe de quatro pessoas é responsável por procurar as benzedeiras para confirmar dados.

A ideia é que as informações sejam incluídas em uma mapa virtual, disponível em site ou aplicativo, cujo desenvolvimento depende de possíveis parcerias. O endereço exato não será divulgado, a fim de manter a privacidade e segurança das benzedeiras, mas um número de contato estará disponível. “Muitas benzem em casa e também têm a intolerância religiosa”, justifica Jessika Barbosa, de 27 anos, uma das diretoras do departamento cultural.

Ela conta ter se surpreendido com o retorno. “É um ofício que as pessoas procuram, mas têm dificuldade de achar. A gente acabou descobrindo que existem pessoas que fazem de tudo para que perdure”, afirma.

Além do contato telefônico, a ideia é visitar algumas benzedeiras para fazer registros em imagens, a serem exibidas em uma exposição e no próximo desfile da escola. Há, também, o interesse em buscar editais e parcerias para potencializar o projeto, feito de forma voluntária.

Carnaval

O enredo das benzedeiras é desenvolvido pelo carnavalesco Renan Ribeiro, de 34 anos. Ele se recorda de ter sido levado por vezes a uma benzedeira do bairro da Penha, zona leste, durante a infância. “Tenho essa referência muito forte dessa senhora, a Dona Rosa.”

No desfile, serão abordadas as influências indígenas, africanas e católicas, assim como haverá a presença de algumas benzedeiras. O trevo símbolo da Camisa Verde e Branco aparecerá como uma das ervas manipuladas nos rituais. Além disso, será lembrada a bênção simbólica que a escola recebeu ao se tornar afilhada da Mangueira.

Com origem em 1914 e nove títulos do grupo especial, a tradicional escola da Barra Funda, na zona oeste, desfilará pelo grupo de acesso no próximo carnaval. “Trato (no desfile) da figura da mulher como a detentora desse domínio sobre a prática do benzimento, da benzedeira como uma guardiã dos segredos e da sabedoria”, descreve o carnavalesco.

Ritos

Os ritos praticados pelas benzedeiras brasileiras misturam influências europeias, indígenas e africanas, de objetos a imagens, gestos e orações. Para os pesquisadores do tema ouvidos pelo Estadão, a prática está menos difundida em áreas mais centrais. Segue, porém, presente nas periferias e zonas rurais.

Professor na Universidade Estadual de Goiás (UEG), Gilson Xavier de Azevedo identificou 25 benzedeiras em uma cidade do interior do Estado durante pesquisas para o doutorado sobre o tema, em Ciências da Religião. “Elas parecem estar desaparecendo, mas este é um número considerável para uma cidade de 50 mil habitantes”, diz.

Para ele, o ofício se mantém especialmente nos locais menos atendidos pelos serviços de saúde e cultura e por outras religiões, virando opção para a qual se recorrer nas horas de necessidades diversas. “A benzedeira está aberta a essas três dimensões: tem a cultura, a medicina e a religião subjetivas dela.”

O docente compara que as benzedeiras, assim como as religiões em geral, “respondem ao que não tem resposta” e exercem uma função de “esperançamento”. Por isso, não acredita que elas desapareçam, mas que se adaptem ao longo do tempo.

O ofício hoje, embora seja caracterizado pela oralidade, também tem sido difundido pela internet. Há benzedeiras que mantêm canais em redes sociais e até ministram cursos.

Pesquisadora do tema, que estudou no pós-doutorado em História Oral, Yls Rabelo Câmara percebe relação do ofício com as atividades de bruxas europeias, como da região ibérica, mas aponta como maior diferença justamente a mistura de influências indígenas e africanas. Entre os elementos mais comuns, estão algumas orações católicas, como a Ave Maria e o Pai-Nosso. “Mas cada uma faz do seu modo. Com o terço na mão, com ele fechado dentro da mão, com ervas, com galho de pinhão. Algumas usam linha, tesoura”, afirma.

Para ela, o exercício majoritário por mulheres está ligado à construção social dos gêneros. “É um ofício de cuidado, de maternagem”, diz. “São procuradas para a solução de problemas de toda ordem: físicos, de saúde, mentais, de mau olhado, no trabalho, conjugais.”

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