O combate ao vírus por quem está na linha de frente


“Em uma escala de 1 a 10 o medo da população está em 6 mais ou menos. O dos médicos, 11.” O infectologista Natanael Adiwardana divide a atenção em quatro empregos diferentes e comentou que todos os profissionais com quem tem contato estão bastante preocupados. Ele é responsável pelo controle de infecção no pronto-socorro de Barueri, emergencista no Instituto do Câncer, infectologista na Rede d’Or e integrante do Médicos Sem Fronteiras.

Natanael contou que atendeu um morador de rua com febre e tosse leve, quadro comum, de recomendar apenas repouso em casa. Ele reparou que o paciente estava com as roupas molhadas. Por não ter onde estender, com medo de ser roubado, ele deixava secar no corpo. “Estava gelado, com baixa oxigenação.” Foi encaminhado a um centro de acolhimento.

O médico Marcos Cyrillo, diretor Sociedade Brasileira de Infectologia, começa a trabalhar da cama às 6h30, tentando resolver problemas ocorridos na madrugada. A rotina tem reunião atrás de reunião, intercalada pelo acompanhamento do que acontece em hospitais, com o do Servidor Municipal. Ele contou sobre o dia da semana em que registrou o atestado de óbito de duas pessoas entre 30 e 40 anos. “Algo incomum, pessoas que não seriam grupo de risco.”

Pesquisadora de vírus respiratório há 20 anos, Nancy Bellei soube que sua rotina mudaria quando o novo coronavírus começou a contaminar os chineses, em dezembro. Ela lembrou do período de pandemia por H1N1, quando todas as pesquisas relacionadas a outros assuntos foram paralisadas e os esforços se voltaram a estudar aquele problema. “Agora, piorou.” A chefe da UTI do Hospital São Paulo comentou que metade dos pacientes com ventilação está indo a óbito. Com o H1N1 era muito menos. “Conseguíamos evitar a morte de quase todos. E nossa UTI é muito boa, não está lotada.”

O médico Ronald Ferreira Davi Junior faz turno de 12 horas na sala de emergência para quem está com suspeita de covid-19 no Hospital São Paulo. “Há uma quantidade muito grande de pacientes que estão chegando com síndrome respiratória e isso preocupa.”

Um quadro leve se torna grave para quem vive na rua

“Entre 8h30 e 9h começa o atendimento no Largo de São Francisco”, diz o infectologista Natanael Adiwardana. “Muitos estão na fila para comer. Trabalho com o Convento São Francisco, que organiza diariamente doações de comida para moradores em situação de rua. No trabalho dos Médicos Sem Fronteiras, fazemos triagem inicial para separar quem tem sintoma respiratório. Passam pela gente cerca de 800 pessoas. Cerca de 200 precisam de atendimento.

O primeiro passo é conversar com o enfermeiro; se houver agravo, conversa com médico. Os com sintomas mais graves são encaminhados para a rede pública. Quem está mais estável é levado a abrigos com distanciamento, os ginásios. Lá tem cama única. Melhor do que o albergue, com beliches.

A demanda de quem mora na rua se mistura com a demanda social. Precisa identificar o grau de vulnerabilidade, porque às vezes o sintoma poderia ser considerado leve se a pessoa tivesse onde morar, mas por estar na rua se torna grave. Atendi um paciente com febre e tosse há dois dias. O quadro não era grave. Mas quando fui examiná-lo, notei que estava com a roupa molhada. Para receber atendimento, lavou a roupa que estava no corpo, mas não tinha onde estender, tinha medo que roubassem. Estava gelado, com a saturação de oxigênio baixa. É grave, ainda mais agora que entramos no outono. Por bem, um caso como esse precisa ir para o centro de acolhimento.

No Centro de Acolhimento Água Rasa, à tarde, havia um senhor que não conseguia sair da cama. Já tinha tratado tuberculose, tinha estigma de problema no coração e fígado. Encaminhamos ao pronto-socorro.

Nesses locais já há campanha de vacinação para influenza. Assim que passam conosco tomam a vacina. Geralmente essas ações duram três horas. O que tem me chamado a atenção é que vemos todos os dias colegas ficando doentes, precisando de leitos de UTI. Isso nos leva para práticas além do racional, estamos vulneráveis por desconhecimento da doença e pela insegurança sobre as condições para trabalhar, a dificuldade em ter insumos básicos. Vira um desafio.”

12 horas de trabalho na sala de emergência de suspeita de covid-19

“Dia foi bem cansativo”, conta Ronald Ferreira Davi Junior, médico no Hospital São Paulo. “Estamos com a sala de emergência dividida, com uma ala só para quem está com suspeita de covid. Fico nesse local. Nosso objetivo é estabilizar os pacientes e encaminhar para UTI, são três andares aqui no Hospital São Paulo Já estamos conseguindo pela imagem de tomografia identificar com bastante nitidez quando o paciente chega com covid. Me chamou a atenção um paciente com tuberculose, com tosse prolongada, febre e todos os sintomas do covid. Quando fizemos o raio X, deu uma alteração diferente, portanto não havia motivo para mantê-lo internado. Há uma quantidade muito grande de pacientes chegando com síndrome respiratória.

A rotatividade é grande e a demanda também. É uma sala que está superlotada. A enfermaria também está cheia, mas não lotada. Não sabemos como ficará nas próximas semanas e isso nos preocupa.

Não dá para ter noção exata, mas passaram por mim, nas 12 horas de plantão, 30 a 40 pacientes. Tem triagem antes, os que passam com a gente são pacientes com falta de ar.

Assinei um óbito de suspeita e não foi confirmada covid, precisa esperar o resultado. Ele chegou com insuficiência grande, teve de ser entubado, mas infelizmente faleceu. Tem de sempre lembrar que a pandemia está aí, mas há outros pacientes com problemas respiratórios que não são covid.

Fico na sala de emergência, não é UTI. A gente estabiliza e encaminha para a UTI. Não temos horário para almoçar. Fazemos rodízio com quem está lá, a depender de como está a sala. Fui comer às 14h30, um lanche rápido, porque há muitos pacientes. Voltei antes das 15h. Saio por volta das 20h.

Chego em casa vou direto para a lavanderia, deixo a roupa para lavar, tomo banho e vou para o quarto para não contaminar minha mãe e minha irmã. Em casa, fico estudando. É algo completamente diferente do que já vivemos. Diferente da H1N1. Estamos nos saindo bem, na medida do possível. Por enquanto está aumentando o nível de propagação. Por isso, ainda é impossível estabelecer quando vai acabar.”

‘UTIs dos hospitais públicos estão quase todas lotadas’

“Acordo às 6h30 e começo a trabalhar da cama. Respondo às ligações da madrugada e também do médico que entrou logo cedo. Tomei um café e fui visitar o Hospital do Servidor Público Municipal”, diz Marcos Cyrillo, diretor da Sociedade Brasileira de Infectologia.

“É sempre uma situação nova, mas o ritual é parecido. Visito as áreas de atendimento. A primeira é o pronto-socorro. Vejo quantos doentes estão sendo atendidos. Separamos os que estão com sintomas respiratórios. Acompanho a triagem. Se estão usando EPIs de maneira adequada. Se estão usando álcool em gel. Se os exames estão demorando para retornar.

Vejo as UTIs. As dos hospitais públicos estão lotadas. Converso com pessoal da UTI. Analiso tomografias, vejo os exames de sangue, rim, fígado e pulmão, se tem anemia. Se o paciente está tomando cloroquina, qual a dose.

No fim da manhã e início da tarde há uma reunião com grupos de crise. A alta direção do hospital também participa. Discutimos as questões necessárias para o hospital sobreviver. Conferimos taxa de ocupação, exames que foram suspensos, ambulatório que não está funcionando. A pressão do CEO é atender o máximo de gente. Então vemos como estão as UTIs, a necessidade de transformar centro cirúrgico em UTI. Debatemos quais drogas devem ser usadas, a formação de grupos de testes de tratamento. A cada dia é discutido qual protocolo vamos seguir. Não são só decisões técnicas, são administrativas também.

Não tenho almoçado. Não é raro estou mastigando uma bolacha. As reuniões têm se estendido, temos diversos treinamentos. De médicos sobre equipamentos aos funcionários da funerária sobre a maneira correta de higienizar o caixão e fazer o isolamento.

Fui ao Instituto de Gastrocirurgia Oncologia e Proctologia, onde realizo os mesmos protocolos. Voltei para o Servidor, depois fui para o Instituto Brasileiro de Câncer. Voltei para casa às 23 horas. Chego em casa, tomo banho e leio e-mails, artigos. Sinto muita falta da vida social. Tenho saído antes de a minha esposa acordar e voltado quando ela está dormindo.”

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